(Revisão: Suzana Mafra)
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Sábado, fim de tarde, fui atender a um pedido da minha mestra de reiki: regar as plantas do interior de sua casa apenas neste dia, já que breve retornaria de viagem. As plantas da área externa ficaram a cargo de outro colega, por coincidência, também aikidoca.
Fui com uma certa preguiça, confesso… Estacionei o carro em frente ao portão e me deparei com um gato deitado em uma das duas cadeiras que ela mantém na pequena área que dá acesso à porta de entrada da casa. Já fiquei chateada, pois não gosto muito de gatos. Abri o portão e fui atravessando o pequeno jardim em direção à porta da casa, sob o atento olhar do felino. No entanto, o maai entre ele e eu não era suficiente para que ambos não se sentissem ameaçados. Ele, então, rosnou e eu, num misto de medo e raiva, recuei.
Resolvi então fazer a tarefa do outro aikidoca, regar o jardim externo e, claro, molhar o gato. Afinal, todos dizem que gatos não gostam de água…
Com a mangueira ligada e vigorosos “SAI GATO!” joguei pequenos esguichos em sua direção (pois se o molhasse totalmente, danificaria o forro da cadeira), mas para minha infeliz surpresa o gato só se encolhia, com um olhar nada amistoso.
Foi então que vi uma canaleta para fios elétricos – de mais ou menos um metro e meio – jogada no jardim. O material ideal: leve e flexível. Eu poderia enfim cutucar ou mesmo bater no tal gato sem machucá-lo, e o mais importante, com uma distância segura. Agora vai dar certo! Com outros “SAI GATO!!! SAI GATO!!!” eu cutucava o gato dos infernos que cada vez mais se fechava em pokémon… Tive que apelar e bati em sua cabeça, mas a leveza e flexibilidade da canaleta acabaram por fazer “carinho” no gato e foi justamente isso que ele entendeu, pois começou a esticar o pescoço para receber o “afago”. Percebendo esta oportunidade, comecei de fato a acariciá-lo com a canaleta, é claro, e com ele totalmente rendido em seu trono, consegui com a outra mão abrir o cadeado da grade e, em seguida, a porta, torcendo para que ninguém estivesse vendo a ridícula cena.
Entrei rapidamente com minha espada em mãos e fechei a porta. Cumpri minha tarefa e o que temia aconteceu: o gato havia saído da cadeira e estava literalmente colado à porta, pronto para entrar, rosnando seu pedido de licença. Fechei, então, a porta novamente e peguei minha espada para aplicar o mesmo golpe: carinho. Atraído pela necessidade do golpe, o gato prontamente aninhou-se sob a ponta da canaleta, rendido aos afagos, permitindo que eu saísse e fechasse a porta e a grade. Fugi rapidamente para o portão do muro, abandonei minha espada e deixei o gato carente aos miados.
Entrei no carro ainda chateada, mas com um certo ego inflado, por ter utilizado o Aikido na situação. Na segunda-feira cheguei contando o grande feito para os alunos da turma das seis horas. Relatei a minha sensível percepção ao movimento do gato, que viu como carinho a minha agressão inicial, fazendo-me transmutar minha intenção e controlá-lo: puro Aikido.
Ao terminar o relato bateu uma grande dúvida… quem foi o nage e quem foi o uke dessa história? Eu percebi a sutil mudança e a necessidade do gato por carinho, e ele transformou minha agressão em afago: quem de nós foi nage e quem foi uke? E no tatame? Até que instante de um movimento técnico nós somos nage ou uke? Estamos sendo sinceros em nossos objetivos ou a espada é apenas uma banda de canaleta leve e flexível? Em uma aula magistral sobre ukemi, o Sensei James nos fez perceber que somos os dois: quando o uke ataca, está sendo nage, e ao receber este ataque, o nage se torna uke – a alternância entre esses papéis se faz presente até a conclusão do movimento.
Acredito que – dentro ou fora do tatame – buscar, perceber e viver (DO) esta constante troca nage/uke é o movimento (KI) em equilíbrio (AI).
Esqueci de dizer: eu estava à paisana, mas o gato vestia dogi e hakama, ele era preto e branco… Domo Arigato Gozaimashita Gato Sensei.
*CrisB – faixa-preta 3º Dan da Academia Central de Aikidô de Natal
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Glossário
REIKI – Técnica criada em 1922 pelo monge budista japonês Mikao Usui, onde os praticantes acreditam ser possível canalizar a energia universal – manipulável através da imposição de mãos – a fim de restabelecer um suposto equilíbrio natural, não só espiritual, mas também emocional e físico.
MAAI – Momento em que os dois aikidocas se encontram na distância ideal, física e psicológica prontos para a prática da forma ou da técnica livre.
POKÉMON – É a contração de duas palavras em inglês: pocket, que significa bolso; e monster, que significa monstro. Assim, um pokémon é um”monstro de bolso”, uma criatura fictícia popular em videogames e desenhos. Criado por Satoshi Tajiri em 1996, essas criaturas se transformam em esferas.
UKEMI – É um termo composto de duas palavras: uke, de ukeru – receber; e mi – o corpo. O ukemi é o comportamento do uke, como absorve e dissipa uma projeção de forma que não se machuque.
UKE – Praticante que faz o ataque e recebe a técnica do nage.
NAGE – Praticante que recebe o ataque e o redireciona através da técnica o ataque ou a contenção do uke.
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Colaboração:
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